Química
Química, cebolas e lágrimas
A cebola é um alimento bem enraizado na cultura gastronómica portuguesa. É pouco calórica, possui proteínas, vitaminas e outros nutrientes benéficos para o nosso organismo. São conhecidas várias propriedades benéficas para a saúde, nomeadamente o seu poder anti-inflamatório, analgésico (diminui a dor), estimulante da circulação sanguínea, anti-alérgico, anti-cancerígeno, entre outras. Tem é um pequeno problema. A não ser que nunca tenha posto os pés numa cozinha para cozinhar e nunca tenha cortado uma cebola é que nunca lhe aconteceu. Quem já o fez conhece as consequências. Cortar cebolas e não chorar é quase como alguém sair de casa a chover e não se molhar. Por que choramos ao cortar uma cebola? Por que sentimos aquela sensação desagradável dos olhos a picar antes de irmos às lágrimas? Estes fenómenos têm razão de ser, como tudo na vida. A explicação? Está na Química, claro! Mais uma vez a Química desempenha um papel fundamental na explicação daquilo que já foi considerado em tempos um dos grandes enigmas da cozinha (ou do cozinheiro?). Então, comecemos a explicação pelo princípio? Quando cortamos uma cebola, cortamos as suas células que contêm uma grande quantidade de substâncias no seu interior que são libertadas. Aquelas que são mais voláteis chegam-nos ao nariz, boca e olhos mais rapidamente. Umas têm aroma e sabor adocicado e, portanto, são agradáveis mas outras nem por isso? Quando então as células da cebola são cortadas, substâncias que antes estavam separadas na estrutura celular misturam-se e começam a reagir entre si. Por exemplo, uma substância contendo enxofre, representada na figura 1, sofre decomposição por acção de enzimas dando origem a outra substância representada na figura 2. Este novo composto é relativamente instável dando origem a um gás contendo enxofre (figura 3), responsável pelo aroma característico da cebola. Esta substância, muito volátil, chega rapidamente aos nossos olhos. Quando entra em contacto com a água existente nos olhos, ocorre mais uma reacção química que a transforma, nomeadamente em ácido sulfúrico (figura 4). Este ácido é bastante forte e corrosivo (descanse que se forma em pouca quantidade?), provocando uma irritação das terminações nervosas dos olhos fazendo com que tenhamos aquela sensação de olhos a picar ou a arder. O que fazemos? Por vezes, instintivamente, esfregamos os olhos com as mãos. Esquecemo-nos, no entanto, que elas estão impregnadas com o sumo da cebola? Portanto, é pior a ementa (perdão, a emenda) que o soneto, como se costuma dizer. Mas o corpo humano é uma máquina (quase) perfeita. Se não, vejamos? Assim que os nossos olhos ficam irritados pela acção do ácido sulfúrico, as glândulas lacrimais entram em acção libertando água. E para quê? Para lavar os olhos, diminuindo a concentração do ácido e anulando o efeito irritante? É por isso que choramos. É por uma boa razão. Refira-se, neste contexto, que existem diferentes espécies de cebolas que libertarão maiores ou menores quantidades da substância de enxofre nefasta que nos faz posteriormente chorar. Assim, a irritação que provocam também será necessariamente diferente.
Agora outra questão? Se não temos aptidão para cozinhar, gostamos muitas vezes de andar pela cozinha a destapar os tachos e cheirar o perfume agradável de um bom cozinhado. Quando se trata de um refogado, por exemplo, por que não choramos quando a cebola está cozinhada? A resposta é simples? A enzima que foi referida acima é inactivada pela acção do calor. Assim, deixa de ser capaz de originar a tal substância com enxofre que em contacto com a água produz o ácido que nos irrita os olhos. Assim, podemos deliciarmo-nos (há quem não goste?) com o aroma agradável das substâncias voláteis libertadas por um bom refogado sem ter que nos agarrar a um lenço.
Voltando à cebola nua e crua? Quase toda a gente conhece os truques para evitar o lacrimejar quando as cortamos. Por exemplo, descascar uma cebola debaixo de água corrente ou molhar as mãos e a cebola antes de a cortar vai reduzir o efeito da substância sulfurosa, uma vez que grande parte do gás vai reagir com a água da torneira, das mãos ou da cebola, evitando que chegue aos nossos olhos. Arrefecer a cebola antes de a cortar também ajuda pois as reacções químicas que nos levam até às lágrimas ocorrem mais lentamente. Outra possibilidade é ligarmos o exaustor do fogão mantendo os nossos olhos fora da corrente das substâncias voláteis da cebola. Outros truques menos prosaicos incluem, por exemplo, o respirar fortemente pela boca. Se inspirarmos o ar pelo nariz, puxamos o tal gás nefasto na direcção dos olhos? Ou ainda mergulhar a cebola durante alguns minutos em água quente antes de ser cortada, o que inibe a acção da enzima que temos vindo a falar. Bom, dentro de algum tempo (10-15 anos) não deverá ser necessário usar qualquer truque. Isto porque há pouco tempo foi noticiado que cientistas neo-zelandeses e japoneses criaram uma cebola que não provoca lágrimas! Como? Por manipulação genética, inibiram o gene responsável pela enzima que produz as reacções químicas referidas neste texto. Os cientistas reconheceram que o sabor das cebolas poderá ser afectado pela alteração da sua composição genética, mas esperam que possa ser melhorado numa fase posterior da investigação? O que esperam, dizem eles, é ?ter essencialmente muito dos aromas agradáveis e doces das cebolas, sem o amargo associado ao factor lacrimogéneo?. Será que estaremos, nessa altura, interessados em consumir mais um produto geneticamente modificado? Chorar a descascar uma cebola é assim tão mau? Se o acto de chorar, noutros contextos, permite libertar emoções porventura reprimidas, aqui permite-nos livrar do tal ácido incomodativo?
Por
Paulo Mendes*
* Prof. Dep. Química da ECTUE e Centro de Química de Évora (CQE)
Publicado no Jornal "Diário do Sul" em 17/3/2008
Disponível no Jornal On-Line da Universidade de Évora (UELine)
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